domingo, 21 de fevereiro de 2010

Tradição Oral

Essa brincadeira de lembrar e escrever é uma delícia, uma coisa vai puxando a outra, as lembranças vão surgindo e ganham vida.
Quando contei sobre nossas idas e vindas de Atibaia, contei que voltávamos ouvindo o futebol no rádio, tinha esquecido que as idas também eram especiais.
Em determinado momento já nem era preciso levar bagagem, minha mãe preparava uma caixa ou sacola com algum ítem para o almoço do outro dia e só, entrávamos no carro e pronto.
Depois que chegávamos na Marginal do Tietê a viagem até que era rápida, mas nem por isso deixava de ser divertida. De uma porta a outra, pela Fernão Dias, são 97,5 kilômetros, mais ou menos uma hora e meia.
Paz e sossego eram artigos raros nos bancos traseiros dos carros de nossa família, afinal, os cinco apertados no banco de trás de um Fusca, uma Belina ou até uma Rural, era tal e qual nitroglicerina pura, qualquer movimento brusco poderia ser fatal! Era inevitável, o pé de um, o cotovelo do outro sempre encontrava no estômago de um terceiro desavisado, acho que uma sardinha tem mais conforto na lata que nós nessas viagens! E não adiantava trocar de carro, sempre ficávamos apertados!
Meu pai criativo como ele só, inventou um método infalível de viajar em paz... como um verdadeiro "sherazade", contava histórias, engana-se quem pensa que ele contava os clássicos, cinderelas e vovozinhas passavam longe dessas narrativas, meu pai inventou um punhado de personagens, todos heróis.
Eram histórias em episódios, assim como as mil e uma noites e as séries da televisão, cada um tinha sua história que se desdobrava em milhares de aventuras. A personalidade de cada um, o jeito de resolver seus dramas, tudo metódicamente organizado para que ninguém se entendiasse no meio da viagem, houve até episódio especial, o encontro dos três heróis prediletos, Beterraba, Capitão Verde e Macaca Chica.
Beterraba era um menino corajoso que tinha uma caixa de ferramentas super bem cuidada, e muito antes do Magaiver ele usava engenhocas malucas para enganar e prender os bandidos. Capitão Verde, era verde mesmo, era mesmo o capitão de um navio que naufragou, ele foi arrastado até a praia, ficou desacordado na areia, quando acordou, todo ardido do sol, descobriu que passar um peixinho verde nativo daquele mar, na pele, aliviava a ardência, ele não sabia que ficaria, para sempre verde fosforescente! Quando voltou para a "civilização"usava uma bandagem para esconder seu colorido. Como era esperto como ninguém, combatia os vilões se aproveitando de sua suposta invisibilidade!
Macaca Chica, uma macaca ecologicamente correta, tinha uma bolsinha cheia de utilidades, defendia a Natureza de malfeitores malvados.
Ele contava e nós, a assistência, torcíamos junto!
Ganharam tanta vida esses nossos heróis que meus filhos ouviram meu pai contar cada uma dessas histórias.
Quando ouvi a Filha-que-já-pode-votar falando com o Moleque sobre a Macaca Chica do avô deles, com tanta intimidade, entendi por que nós gostávamos tanto dessas histórias, não era apenas a necessidade de entretenimento numa época em que o máximo de tecnologia automotiva eram os toca-fitas stéreos, meu pai contava essas histórias por gosto!
Qual foi o resultado disso em mim?
Nunca consegui inventar um personagem, nem uma aventura para contar para meus filhos, mas assim como meu pai, eu contei histórias para meus filhos todas as noites durante anos e anos, os contos dos Grimm, as histórias tradicionais brasileiras do Câmara Cascudo, do Silvio Romero, as fábulas Italianas do Ítalo Calvino, os contos russos, tudo que passou pela nossa mão, os livros que comprei, os livros que eles trouxeram emprestado da escola.
Acho que essa é uma das milhares de maneiras de se tecer a trama de uma relação, uma maneira de fortalecer, de garantir mil conquistas que fazemos pela vida.

Um comentário:

Ana R. disse...

Das coisas mais preciosas que guardo na memória, estão estórias assim...Bons tempos! (sem medo de ser acusada de saudosismo).